Uma Narrativa Qualquer

20/03/2024

Apenas uma atividade de escola cuja qualidade acabou sendo relativamente aceitável. Pra fazê-la numa outra aula qualquer sem que eu precisasse logar alguma coisa no computador de lá, hospedei o txt aqui. A escola jamais saberá desse site, mas enfim... Tá aí o resultado, nada tipo "oooóoooò", mas dá pro gasto. Se servir de incentivo, no final, coloquei uma perguntinha pro caso de você ler.


Mari

O silêncio entre a minha observação do que ocorria e a feitura de alguma coisa foi insuportável. Notem que Mari era minha única amiga no mundo todo desde que havíamos nos conhecido lá nos dias de infância, quando esta tinha piedade de minha burrice, ajudando-me com as tarefas, provas e o que mais viesse... Nunca fui muito de estudar, sabe... Já ela, encontrava naquilo um prazer que até hoje não entendo e, a julgar pelo que agora sei, deve ter...

Perdão, aquele dia me abalou de modo a não conseguir pensar claramente por muitas vezes, especialmente naquelas que me obrigam a falar sobre (como esta)... Mas, não, é preciso que saibam, meus caros, de minha tragédia. Vocês que têm a vida ganha não fazem ideia de como foi acordar naquele dia nublado e nada ter em mente senão um pressentimento horrível... Realmente, dizem que todos sabem quando é chegada a hora de certas coisas.

Cheguei na hora, como fazia todos os dias desde me tinha como gente. Mal levou um único instante para eu perceber a ausência dela. Aparentemente, não havia mais quem ligasse, uma vez que todos seguiam os cursos de suas vidas fúteis (como eu também, infelizmente, sempre fiz). Não sejam como eu, em hipótese alguma, pois caso tentassem, tenho certeza, suas mentes derreteriam e se tornariam não muito mais do que a minha própria.

Fui relatar à coordenação para ver se me davam algum tipo de ideia do que fazer, tendo eu esperança de que, daquela vez, enfim, alguém daria ouvidos às minhas mazelas. Nesse sentido, devo dizer que tive a sorte de ter uma interseção de interesse com os superiores, pois eles "importavam-se" com ela, ainda que só para manter seu nomezinho numa lista de bons alunos. Importava-me por ser minha amiga, e nada mais, e não digo isso por mero romantismo. Não tinha amizade com ela pela ajuda que me dava com as provas, mas por nunca se importar em fazê-lo. Em outras palavras, minha amizade não era de interesse, mas resultado da gentileza dela em atender os meus (algo que me encantou), apesar de não precisar (paciência, meus caros, já voltarei à história...)

Surpreendentemente, meu esforço não foi tão em vão quanto eu temia e, afinal, deram um jeito (que, suponho, devesse ser extremamente simples para eles) de contatar os pais dela. O Sr. e Sra. - não pareciam ser pessoas muito amigáveis, embora, suponho, tentassem fazer o melhor que pudessem. Não fui eu, mas sim um funcionário da recepção, que atendeu, mas fui capaz de ouvir, não que fosse difícil, sendo que a voz de um deles ao telefone estava bastante chorosa (obviamente, não falava baixo). Nem mesmo alguém com meu nível de inexpressividade manteria o tom normal em meio a uma situação daquelas. Mari estava desaparecida desde o dia anterior e, a supor pelo fato de que ninguém a tinha sequer visto, devia ter sumido na calada da noite, quando nenhum som é produzido.

Espantei-me com a ideia; os pais teriam dito se fosse o caso dela ter saído para uma festa ou algo de natureza semelhante, e de todo modo, conhecendo-a, sabia que ela não era muito desse tipo de coisas. Arrepiei-me, pois a hipótese mais plausível seria a de que ela própria tivesse saído. Tudo apontava ao contrário: tinha receio de fazer qualquer coisa à noite, saiba que teria escola (à qual raramente faltava) cedo no dia seguinte, jamais, nem aqui, nem na China, sairia de casa assim... Querendo ou não, era a explicação provável, ou melhor, a única possível, desconsiderando qualquer outra de sequestro, pois o Sr. e Sra. - eram o tipo de pessoas neurastênicas que se atentariam até ao som de um mosquito, além de se incomodarem igualmente com todos; sendo assim, certamente saberiam que alguém entrasse em sua casa.

O sujeito abaixou o telefone, olhou para mim, contou o ocorrido e disse para que eu fosse à minha sala. Saí de lá, mas saibam, meus caros, que nunca o Universo fizera um jogo tão ardiloso e cruel como naquela ocasião, ou seja, conspirava ao mesmo tempo, por meu aparente alívio e por minha maior miséria. Nenhum dos funcionários vigiava a escola no momento em que deixei a sala, provavelmente detidos com suas conversas estúpidas que nada me importavam, mas que, na hora, foram cruciais para meu sucesso parcial, "sucesso" este que me revelou... Sem mais delongas, vi o muro, pálido e alto, e notei que não seria difícil subi-lo e me encaminhar até sua casa, uma vez que já conhecia o caminho de cabeça, já que era o único lugar para o qual eu me dava ao trabalho* de ir, ou melhor, não exatamente o único...

Meu corpo pequeno e sem força foi capaz de triunfar sobre o muro que me mantinha dentro das fronteiras do que agora parecia uma prisão diante de minha dúvida. Mas não, não iria à casa dela, por nada neste mundo ela faria o que eu achava que tinha feito em sua própria casa; a despeito do conforto, devia valorizar mais outras coisas no momento... Seria impossível pensar claramente no estado no qual se encontrava, embora eu negasse, sabia pela mais pura lógica, e... Em resumo, no momento, corri imediatamente para onde minha intuição, uma velha (e comumente falha) aliada, que me guiou a um local já há muito esquecido por mim... De fato, a cripto mnemonia é um fenômeno interessante, mas garanto que vocês nunca desejariam tê-la naquele contexto.

Acontece, meus caros, que desde que nossa relação evoluiu minimamente de uma mera questão acadêmica para algo maior, por mais mecânico que fosse na época como, creio, costumam ser estas amizades iniciadas na escola, costumávamos nos encontrar num ambiente que, curiosamente, atraía nossas duas mentes, por mais distintas que fossem. A natureza é um ímã para almas das mais diversas, talvez seja o que resta do neandertal da savana em nós, pois afinal, sempre que um rico tem oportunidade, põe em seu quintal árvores esparsas meio-altas, as ideais para se caçar um animal de tamanho médio num bioma mais ou menos árido (acalmem-se, bando de apressados, a desgraça alheia sempre agrada...)

Era uma praça daquelas onde só se leva alguém cuja vida é a mais miserável no que diz respeito ao contato com a natureza, tão horrível que chegava ao ponto de precisar ir para lá com esperança de aliviar o instinto bucólico. De todo jeito, era um canto relativamente agradável, com uma abertura ao céu invejável e uma brisa amena de verão que me lembrava uns versos shakespearianos sobre Adônis e toda aquela camponesidade belamente saída da boca de uma olimpiana. Tantos eventos bons se passaram naquele pequeno lugar, bem como aquela... o quê havia sido? Uma confissão? Desabafo? Não sabia, inclusive, é das coisas que ficam menos claras quanto mais se tenta esclarecê-las.

Pois bem, meus caros, se pedem logo desfecho, desconsiderando todas as minhas observações que, garanto, ainda lhe serão úteis quando acaso estiverem no meu lugar, prossigo. Caminhei ao canto no qual sempre ficávamos, pois de todos os conjuntos de dois metros quadrados do mundo, escolhíamos lá. Qual foi minha surpresa, apesar de interiormente já saber de tudo, ao encontrá-la deitada no chão, com um frasco na mão direita. Algumas lágrimas, embora secas, ainda pareciam cair de seus olhos tristes e saltados numa ilusão de ótica estranhíssima. As horas que passara naquele estado tinham deixado algumas marcas aparentes em suas costas; estava de barriga para cima e a gravidade fizera o seu trabalho.

Na outra mão, havia um papelzinho, onde estava escrito:

“A natureza com ela mesma em guerra
Proclama que, ao morreres, morre a Terra.”
**

Ladhu G., 2024


Antes da "perguntinha", os asteriscos:

*As expressões "dar-se o trabalho" e "dar-se ao trabalho" são ambas gramaticalmente corretas, mas têm sentidos distintos. "Dar-se O trabalho" indica que o indivíduo está se dando o trabalho, enquanto "dar-se AO trabalho", indica entregar-se ao trabalho. De um lado, alguém tão confiante a ponto de se dar seu próprio trabalho e, do outro, alguém tão passivo que só se entrega a ele. É interessante pensar nesses traços dos personagens ao escolher alguma das duas (ou sou só eu sendo estranho).

**O dístico da 2ª estrofe de Venus and Adonis, de Shakespeare, que se lê no original: “Nature that made thee, with herself at strife,/saith that the world hath ending with thy life.”


A perguntinha era a seguinte: qual é o gênero do(a) narrador(a)?


É isso, пока-пока!

Pq? PORQUE SIM