Hellbent (2004)

01/07/2024

"Hellbent" de fato não é filme bom; especialmente se pensarmos nos efeitos de hoje, exatos 20 anos depois (ao menos no dia em que escrevo isto, 26 de junho). É fácil pensar que qualquer inexperiente em cinema faria melhor com câmeras de celulares e efeitos do primeiro editor de vídeo gratuito que aparece com uma busca simples; e, devo dizer, grande parte dessas críticas são válidas. Mas acaso o trabalho da crítica não é menos dizer o que algo foi do que separar o joio do trigo, isto é, diferenciar coisas, mesmo que semelhantes? Pois é o que penso: não há sentido em haver uma crítica tão-somente descritiva: do contrário, apenas se assistiria ao filme sem maiores enrolações, não?

Ainda assim, como se trata de uma obra relativamente pouco conhecida, é bom fornecer a tal da sinopse: tudo começou quando um assassinato misterioso de um jovem casal é descoberto em West Hollywood, Califórnia. O caso é dado ao nosso herói e protagonista de facto, ⁣ Eddie, que trabalha numa agência forense ou coisa do tipo, embora não seja oficialmente um policial. Na situação em que o filme começa, o personagem espalha cartazes a respeito, o que o leva, muito coincidentemente, a conhecer Jake, seu interesse romântico ao longo de todo o longa.

De cara, somos apresentados aos personagens Chaz, um satiríaco; Tobey, uma drag queen; e Joey, um inapto. Todos logo vão a uma planejada festa de arromba, ignorando, claro, o clima suspeito na cidade. Como era de se esperar, todos, exceto o nosso bom e velho Eddie, bem como o seu parzinho, são assassinados um a um. Se acha isso spoiler, primeiramente, é bem possível que tenha um repertório deficitário em slasher, e segundo, vá ler a sinopse que está no Rotten Tomatoes (que é essencialmente a mesma que fiz agora).

Feito o resumo básico, é isso: não há nada lá muito interessante no que diz respeito ao grosso do filme: se botassem sua logline ao lado de centenas de outras, é provável que apenas a palavra "gay" a diferenciasse das demais. Ou seja, o crucial é que temos uma estória das mais previsíveis que se pode imaginar, mas com o claro diferencial queer; assim sendo, a questão que resta a se atentar quando se pretende fazer uma crítica da obra é uma: esse diferencial (que é aparentemente o único) faz valer o resto?

Antes de discutir isso, devo esclarecer alguns pontos: 1) ele não foi o primeiro filme do subgênero a inserir a temática gay, mas há de se reconhecer algum pioneirismo, 2) ao contrário do que alguns pensam, não acho que ele retrate a comunidade LGBT+ de forma degradante ou coisa parecida, e 3) esse diferencial que ressaltei implica sim em outros diferenciais menores, diminutos, mas ainda dignos de serem levados em conta.

Quanto ao segundo ponto, em momento algum a obra se apresenta enquanto representativa de toda e qualquer pessoa queer; ele é claramente sobre homens cisgêneros e gays. Eles poderiam ter incluído outras letras? Com certeza, mas, para o bem ou para o mal, não foi o caso e, todavia, não era a proposta. Aceitado isso, alguns ainda podem argumentar que o longa-metragem trata como se todos os homossexuais masculinos fossem daquele modo bem específico e tivessem unicamente aquele estilo de vida. Bem, sobre isso, não. Em momento algum dá-se a entender que, segundo o filme, todo gay é festeiro, branco e com bom trato social. O fato de todos os personagens principais, que são gays, serem assim, numa obra onde basicamente todos o são não é estereotipar, mas sim fazer o recorte do escopo narrativo. Existem muitas vivências e a obra não tinha como abarcar a todas de uma vez, e tanto sabia disso que não se propôs a tal: a meu ver, ela é autoconsciente o bastante para saber que está contando uma estória sobre gays baladeiros e brancos em West Hollywood, algo, de fato, bem específico. O fato de todos os principais serem mais ou menos assim é lógico: pessoas tendem a se unir com aqueles que têm estilos de vida minimamente parecidos com os seus próprios; por isso é comum que, num grupo onde há um festeiro, haja, na verdade, mais de um, ainda que em diferentes graus.

Agora, indo ao terceiro ponto, às implicações do diferencial primário, são, sem dúvida, o ponto mais interessante do filme. Óbvio que se deve começar a análise pelos personagens, já que são, em muitos sentidos, a alma das obras. Como elucidei em meu resumo grosseiro, cada personagem pode ser descrito com apenas uma característica marcante, mas é melhor deixar isso para mais adiante.

Antes de falar de cada um individualmente, o aspecto com o qual quero iniciar, comum a todos, é um só: suas idades e como isso se relaciona aos seus problemas. O típico do slasher é ter protagonistas adolescentes, ainda que interpretados por adultos; entretanto, não é o caso de Hellbent, em que todos têm seus vinte e tantos anos, e mesmo empregos definidos. Este ponto é mais interessante do que se pode imaginar a princípio, por que, afinal, o que leva adultos a terem dilemas um tanto parecidos com os dos mais novos? E a resposta para isso é uma implicação da temática LGBT: quando, naquela época, eles teriam a oportunidade de terem problemas de adolescente?

Ter problemas de identidade, amores fugazes e inseguranças são coisas que a maioria das pessoas experiencia na adolescência e, naturalmente, abandonam-nas, pelo menos consideravelmente, com o passar do tempo. Por isso, ter problemas de adolescente é um direito: do contrário, não há como amadurecer de forma plena. É aí que começa um abismo gritante: durante grande parte da história, gays não tinham esse direito até conquistarem o mínimo de independência financeira. Quando se faz parte de alguma minoria sexual, embora tenha-se paixões avassaladoras, problemas de identidade e inseguranças assim como a maioria, diferentemente desta, muito dificilmente é possível falar sobre (e isso é relevante, pois muitos adolescentes são máquinas de socialização que querem ser ouvidas: por que acha que nunca lemos as cartas-respostas de Wilhelm?).

Aquilo sobre independência financeira tem causa meio óbvia: só pesquisar casos de pessoas queer expulsas de casa. Mas não é preciso ir tão longe para vermos o abismo: em geral, quando um adolescente hétero tem um término e busca apoio nos pais, mesmo nas piores famílias, a chance é abismalmente maior de ser mais reconfortado do que se fosse o mesmo caso com um jovem gay; se é que haveria pretexto para tal, porque um término pressupõe um parceiro, e que parceiros a maioria dos gays daquela geração tiveram quando mais novos, se não, com sorte, alguém com quem ficar muito às escondidas?

Houve, então, algo como um "déficit coletivo": gays empurrando seus problemas de adolescente para mais tarde, prolongando-os. Por isso, faz sentido adultos terem problemas aparentemente demasiado juvenis se tratando de uma obra permeada pela vivência gay de seu tempo. Por essa exata razão, todos os sujeitos do filme têm assuntos mal-resolvidos que são mais juvenis e menos adultos do que o esperado. Ora, o próprio fato que citei acima sobre eles serem festeiros o comprova em certo nível. Muitos dizem que eram baladeiros na adolescência e que, com o passar dos anos, foram perdendo o pique; nesse caso, embora pouco seja revelado do exato passado dos personagens, pode-se supor com alguma certeza de que eles nunca haviam frequentado festas tão abertas na adolescência, o que fez com que a maioria deles tivesse pique até demais.

Aqui está aquilo que considero ser o ponto alto do filme: os perfis dos personagens tendo como partida seus problemas. Nisso, pode parecer estranho, mas achei as escolhas da narrativa surpreendentemente inteligentes, tendo em vista as expectativas. Tomando uma entrevista do próprio diretor e escritor, Paul Etheredge-Ouzts, podemos notar algo aparentemente sem-sentido, mas bastante interessante sobre esse roteiro.


(A partir daqui, só spoiler até os dois últimos parágrafos do texto)

Acredito que todos familiarizados, ou mesmo não, com o subgênero slasher saibam da fama que ele tem de ser incrivelmente puritano. Muito comumente, os assassinatos são punições: especialmente por sexo pré-conjugal. Lembremo-nos da primeiríssima regra de Kevin Williamson para sobreviver a um filme desses: "nunca faça sexo." Parece uma completa piada a quem vê de fora, mas seriamente, ao assistir o Halloween original de Carpenter (universalmente aceito como o grande criador de tendências dentro do slasher), é bastante difícil não acreditar que Michael Myers escolhia suas vítimas por "imprudência" destas, em especial nesse quesito. Logo na primeira sequência, uma das mais inteligentes que já vi, vemos o pequeno Mike observando que sua irmã estava prestes a ter amassos com seu namorado e, apenas minutos depois, ser esfaqueada. Ainda não tínhamos como saber se ele já havia ou não decidido que mataria a irmã antes de vê-la daquele modo, mas era perfeitamente plausível supor que fora uma escolha feita apenas após perceber o quão fornicadora era. E mesmo antes de Halloween: a primeira vítima do Leatherface também era um aspirante a fornicador.

Ora, se tratando do filme mais clichê do mundo, é óbvio que em Hellbent o sexo também seria o motivo da "punição" (representada pelos assassinatos), não? Bom, era o esperado, mas não é o caso: nisso a obra conseguiu sair do óbvio. Nas palavras do próprio Paul, sexo pré-conjugal era o único que os gays tinham, já que o casamento entre pessoas do mesmo sexo só foi se tornar uma questão tempos depois. Assim, entra um fator interessante da obra: quase não há sexo sendo representado (sim, meus pêsames): os personagens, a contrário, estão, em maior ou menor medida, buscando-o e, afinal, não o tendo. Aqui houve aquela que foi a escolha mais inteligente de todo o filme: em vez de um motivo único pelo qual os personagens morreriam (como seria se tivessem optado pela fornicação), é dado um motivo particular a cada um e, como tentarei explicar, acho que todos esses temas têm alguma ligação àquilo sobre questões adolescentes.

Seguindo a ordem das mortes, o primeiro é Joey, aquele que descrevi no começo apenas como "inapto". A inaptidão desse personagem é no sentido do trato emocional, sendo que é no cado dele que fica mais evidente a questão da adolescência não-resolvida. Isso se dá por um motivo claro: na festa à qual eles vão, seu objetivo é um só: pegar Jared, um antigo crush cuja relação não fica bem esclarecida, mas, ao que tudo indica, ambos se conheceram há um tempo considerável, e Joey ainda nutre sentimentos pelo outro. Não é preciso nem dizer o quão adolescentóide é chegar a usar peças específicas (de couro, no caso) e ir a um lugar única e exclusivamente para ficar com um sujeito que conhecera faz tempo e que desde então não tirara da cabeça: muito dificilmente algum adulto faria algo assim e, todavia, foi o caso. Como se não bastasse, os demais dão a entender em mais de um momento que há uma necessidade de "ficarem de olho" nele como babás. Esse é o perfil do personagem que mais escancaradamente diz: "esse daqui não teve chance de fazer merda quando mais novo e por isso ele é assim e quer isso agora." Acho que o ator também ajudou a criar o exagero emocional juvenil tanto quando Joey fica irado consigo mesmo quanto quando, depois de um inesperado sucesso, ele comemora como se ninguém estivesse olhando (que era o que parecia, mas é um slasher, então sabemos o que acontece...).

O segundo na sequência é o satiríaco Chaz. Esse é possivelmente o mais destoante do grupo, visto que o seu defeito particular é menos visível e aparece numas poucas cenas. Uma informação que pode ser importante é que, embora se dê a entender que todos, com exceção possivelmente de Eddie, são, em alguma medida, sexualmente ativos, este é o único que de fato faz sexo durante o filme, ainda que em apenas uma cena, bem no começo; que, diga-se de passagem, serviu quase que exclusivamente para que entendêssemos de cara qual era a dele enquanto personagem. A meu ver, este é um caso mais em aberto: pode-se dizer que ele foi "punido" seja por ser mais "promíscuo" que os demais (a tal satiríase) ou pelo seu uso de drogas que alteram seus próprios sentidos, sendo que o diretor e escritor aponta para a segunda hipótese; e, de fato, é o faz mais sentido caso consideremos o que acontece de forma mais imediata, ou seja, mais próximo da própria cena de morte e já dentro da festa. Mesmo não podendo descartar completamente a primeira possibilidade, tomarei logo a segunda: as drogas. A princípio, parece um problema bem adulto, afinal, o que não falta por aí é gente com décadas na cara se entregando às drogas, não? Em parte, sim, mas devemos lembrar que não só a maioria das pessoas inicia seu rumo nesse caminho na juventude como também isso está ligado a outro fator: o autocontrole. De fato, crianças estão longe de ter este traço, mas conforme crescem, elas passam a achar que o tem, e assim consideram-se, quando são um pouquinho maiores, com cabeça para usar coisas e, por vezes, essas coisas que acabam os usando. Portanto, isto é algo que surge na adolescência, embora muitos, como Chaz, o levem até a "maturidade" (embora se trate de uma imaturidade).

O próximo é Tobey, a drag queen. A "falha fatal" elencada por Paul nesse caso seria "vício em atenção", o que a princípio faz sentido, dado que ele é o personagem que se mostra mais desesperado para conseguir um par em meio a festa: Joey e Eddie já tinham ficantes determinados e Chaz, como parecia ser um ímã natural, mal demonstrava qualquer preocupação excessiva quanto a isso; assim, podemos logo supor que ele almeje única e exclusivamente a atenção em si, e não necessariamente alguém. Apesar de ter nexo, ainda acho tal explicação um tanto simplória, além de que esse personagem é mais interessante do que parece: pelo que me lembro, é o único em todo o filme que cita a própria mãe (no máximo o protagonista cita seu pai para explicar porque ele teria uma farda policial e, possivelmente, para deixar alguma história pregressa), embora, claro, nada aprofundado; ainda assim, podemos inferir que talvez sua relação parental tenha sido uma das raízes para seu comportamento histriônico. Ele também parece ter sido uma forma de inserir a questão de que homens gays "efeminados" (nesse caso específico, artisticamente, já que é drag queen) tendem a ser estigmatizados de algum modo em seu próprio meio, já que o que parece acontecer em suas tentativas de avanço é que a rejeição se dá por conta da "efeminação", e não pelo aparente desespero de sua parte. Outra coisa é que, dos três que morrem, ele é o único que parece ter ido diretamente em direção ao próprio fim, já que com Joey e Chaz, mesmo que o segundo tivesse usado substâncias, nenhum parece ter tão ativamente ido até aquilo que os levaria a suas mortes (ou pelo menos não sabiam que seria o caso). Tobey precisamente caminha até o assassino enquanto faz toda uma cena para que este o leve, e mesmo que não soubesse se tratar de um sujeito perigoso (uma ingenuidade quase que necessária para o filme), poderíamos descrever isso como um "caminhar para a morte".

Perceba que até o momento do texto eu mal havia sequer citado o assassino, e isso se deve ao fato dele ser simplesmente um dos antagonistas mais genéricos que já vi: usa máscara (no caso, de diabo), tem uma arma característica (no caso, uma foice), tem um dado jeito de matar (no caso, decapitação) e carrega um saco com itens duvidosos (no caso, as cabeças decapitadas). Esta aí é a descrição mais profunda que se pode ter desse vilão. O problema é que, diferentemente do que alguns podem pensar, não acho que tenha sido uma escolha genial, altamente pensada nem nada do tipo, mas parece ter sido tão-somente ou uma falta de habilidade por parte do roteiro, ou de tempo de gravação (coisa que envolve orçamento). Diferentemente do caso de Michael Myers no primeiro filme, ao que tudo indica não se tratou, em Hellbent, de uma decisão ponderada já que, se o fosse, seria deixada ao ar o mínimo de uma explicação, mesmo que um esboço, para o espectador juntar as peças, pois nem isso se tem no longa. Apesar de ter sido um incômodo particular, como mostrei falando dos personagens, alguns podem nem se importar na pouquíssima caracterização do assassino, caso considerem que a das vítimas seja mais crucial. Também devo ressaltar, para fazer justiça, que talvez houvesse esperança de transformar a obra numa saga gigantesca (como acontecera antes com tantos slashers) de forma tal que seria possível explorar progressivamente o vilão ao longo dos filmes, ou mesmo usassem isso como clifhanger para que o público desejasse uma sequência, coisa que não se concretizou.

Ok, dito tudo isto, devo maneirar as coisas: apesar de ter personagens com uma caracterização até que interessante, não espere um perfil psicológico machadiano ou coisa do tipo. Ainda falo de um filme sobre um serial killer um tanto exibicionista mascarado de diabo que mata jovens adultos numa festa gay de Halloween e, mais importante (já que nenhuma das coisas que citei impedem uma obra de traçar os tais perfis machadianos), é um longa-metragem majoritariamente formuláico de 85 minutos. Além dos efeitos que, como citei do começo, parecem totalmente escabrosos para nós hoje e acostumados ao tipo de filme mainstream com orçamento certinho, etc.

Feita a observação, devo concluir. Acredito que, de fato, Hellbent merece ser mais assistido e mais conhecido entre aqueles que gostam de slasher e queiram descobrir alguma coisa previsível, mas ainda minimamente interessante graças ao único diferencial que nos apresenta e suas implicações. Não diria que é um diamante oculto nem nada, mas vale a curiosidade de assistir.