A vida já esteve difícil, mas a cada hora me convenço cada vez mais que a desgraça não tem fundo. Nasci de mãe que preocupava-se mais com a própria satisfação, que obtia por meio de diversas substâncias, e com as quais gastava mais que com os filhos, transferindo a mim a responsabilidade de seus cuidados, ao que precisei ganhar meu pão e o deles desde os oito, vendendo os gelados doces por mim feitos a partir das mangas roubadas do jardim de meus vizinhos. A um de meus fiéis clientes, forte expoente da mecânica, ao ter ficado mais próximo, revelei minha história, e este, apiedando-se de mim, ensinou uma boa parte da técnica, tendo para isto tempo apenas nos momentos em que eu estava na rua. Ficando óbvio que eu não conseguiria fazer ambas as atividades da venda e do aprendizado a um tempo, tampouco qualquer possibilidade de estar mais fora de casa por dia (pois as horas já eram então consideráveis), ele aceitou me passar suas lições a preço apenas de meu auxílio, pelo qual eu era remunerada inicialmente com uma quantia equivalente dos doces, e que, depois, conforme fui melhorando, fazendo com que seus clientes antigos depositassem agora mais credibilidade (juntos, a produtividade e acerto era maior), e atraindo também novos, aumentou consideravelmente. De fato, ao passo que crescíamos, precisávamos de mais comida, mas agora, pela primeira vez na vida, eu sentia o que era poder comprar, além de pão, água, e, no máximo, um ou outro ingrediente para as guloseimas, coisas /boas/ para mim mesma e para os pequenos. Começou com um salgado melhorzinho aqui, outro docinho ali, mas, com o tempo, ia aprendendo mais, ia ganhando mais. É preciso ressaltar a bondade do senhor que me acolheu, se não fisicamente, como sua artífice, e permitiu-me assim ganhar tanto o próprio sustento quanto algo para fazer a posteriori; coisa boa, pois veio ele a falecer em pouco e, dada a informalidade da oficina em que ficávamos, que, como descobri após sua morte, não ficara a nome de ninguém, foi fechada. Minha imensa sorte, se assim posso chamar, tinha chegado ao fim; isso se deu quando eu tinha meus dezesseis anos, e meus irmãos, não muito menos, já havendo, como em meu caso, entrado no mundo dos que põe a própria comida na mesa. Unindo forças por um tempo até ali, com o eventual sumiço de nossa mãe, mulher pela qual quase ninguém daria pela falta, de modo tal que até hoje não sei que fim levou (*) tendo se dado pouco depois. Agora, enfim, era possível focar num trabalho de maior nível, para além das oficinas em que eu trabalhava, pois algo que percebi foi que nesses intervalos de anos, mais coisas chegaram à cidade nos nichos mais diversos, dentre os quais estava justamente o meu, a mecânica, que então, em nossa região, fora dominado por empresas vindas de outras localidades. Reunindo-nos, percebemos que não só valeria a pena, como seria de grande ajuda que eu me filiasse a uma destas e, assim, complementasse com renda mais digna a casa que nos ficara (em nome de quem? Não sei). Com isto em mente, me dirigi aonde achei que teria quase que garantidamente receberia lugar, posta minha real habilidade (reconhecida por um experiente, vale ressaltar), e vi que precisaria da confirmação de experiência pregressa, coisa que obteria sem dificuldade, pois não eram poucos aqueles cujos mais diversos veículos ou aparelhos já estiveram sob meus cuidados e, com a escolha da cidade, não teriam como dar por inaceitáveis testemunhos e o boca-a-boca, em especial quando se leva em conta que alguém de meu peso (no caso, falta dele) pagaria quem quer que fosse para mentir sobre quaisquer aptidões; além, claro, da certeza de que outros usariam do mesmo método. Assim, levei um algumas voluntárias testemunhas de meus feitos dignos renome e, com entusiasmo impresso na cara, do qual sabidamente precisaria, fui até o escritório mais próximo cujas vagas sabia estarem abertas. Feita uma curta entrevista tanto comigo quanto com os que aceitaram me apoiar com as lembranças de minhas façanhas, mandaram-me para casa com a promessa de resposta em breve acerca da decisão, ao que aceitei sem hesitar. O curioso foi que, enquanto saía, vi um homem, não muito diferente de mim mesma, com alguns consigo (como dito, com tal informalidade em que estávamos inseridos, era perfeitamente plausível que tivéssemos os olhos como única confirmação de qualquer coisa, dado que diplomas pareciam-nos alienígenas) e, com a amiabilidade natural, cumprimentei-o, sem pensar duas vezes, com um sorriso no rosto; tive em resposta um outro levantar de lábios, mas este, ao que me transparecia, não era como o meu, e mais parecia de mim caçoar que tudo; achei na hora tratar-se de paranóia e apenas segui meu rumo. Dias depois, fiquei receosa pela ausência de respostas, mas como nada fora dito sobre o prazo para tal, considerei melhor seguir com a espera, escolha que, ao se provar infrutívera, foi rapidamente descartada. Num dia em que fiquei só em casa, que, aliás, é o mesmo de hoje, fui ao mesmíssimo lugar pedir, óbvio, alguma explicação perante minha total falta de respostas, e o que vi, sequer precisava dizer, devastou-me ao ponto de agora. O sujeito que a mim olhou tão estranhamente na primeira ocasião era quem agora lá trabalhava; acredite, não é o desgosto por inveja, senão por injustiça: o tanto que rodei pelas ruas da cidade, está claro que aquele nunca fez, diferentemente de mim, delas parte, e, com toda certeza, seu caminho foi facílimo em relação ao meu. E o pior de tudo é que sou plenamente ciente das capacidades que carrego, sobre as quais não me foi feito segredo nem por meu mestre nem por ninguém, tampouco eram minhas testemunhas menos confiáveis, ou mesmo meu jeito de falar, pelo que conferia, menos rebuscado... Olhei ao redor e vi que, a despeito do número razoável de moças que, naquela dia, foram também à procura de emprego, somente homens eu via... Foi quando compreendi que o motivo da rejeição implícita não fora outro além de meu sexo... Isto me enfureceu de maneira inexplicável mas, pelo menos, sei que os pequenos (que agora nem o são) terão mais sorte que eu... De todo modo, quando vieram-me acudir, me alertaram da existência de grupos cujo envolvimento de funcionários é regido também por um comitê mais humanizados, além, claro, de determinadas cotas em específico, dentre as quais me incluía pelo histórico de vida que aqui compartilhei... Apesar do aparente pessimismo, possuo ainda esperança que a vida eventualmente melhore. (*) Caso haja descrença que pessoas à margem do mundo sumam e quase não se dê pela falta, basta ver os casos do Jack Estripador, John Christie, Robert Pickton, Marcelo Costa, etc. (só pra citar nomes mais famosos), cujos crimes foram facilitados pelas vítimas serem crianças faveladas, damas da noite, e usuárias (neste último caso, como a da estória).