Nenhuma gota amiga a me ajudar! /illi inprudentes ipsi sibi saepe venenum vergebant, nunc dant aliis sollertius ipsi./ Lucrécio /Omissa deinde regni administratione hortos fodiebat, gramina serebat et noxia innoxiis permiscebat, eaque omnia veneni suco infecta velut peculiare munus amicis mittebat./ Justino, Epit. Hist., lib. XXXVI /Κνάνεον κραδίψ δε κακόν περιτετροφεν άλγος Ταςνρ δ' νδατδεττα διεσπυτο/ Nicandro, Theriaka, v. 299-300 Todos na Terra já tiveram suficiente raiva, admitam-no ou não, para matar alguém; a diferença entre mim e os outros é que atendi ao chamado. Tudo começou no começo, quando amamos estar vivos e o céu inda é azul; meu porém sempre foi que o verde natamente me foi preferido; quando menor, olhei para baixo o quanto pude, vendo crescerem plantas diversas e enchendo de areia os formigueiros. No início, arrancava-as também, tanto quanto os insetos, exceto algumas poucas. Eu adorava arrancar tudo. Às vezes, quando descobria cupins numa madeira, destruía-a por completo para aniquilá-los, o que já me rendeu várias palmadas por destruir portas inteiras. Mas costumava acabar sempre tudo bem. Como disse, o princípio é o começo e, por incrível que pareça, o primeiro caso que me fez conhecido nisto que pode-se (e por quê não?) chamar de história de vida, foi um ato de suposto heroísmo. Aos dez anos por aí, meu pai saiu pra um bar e, ao contrário do hábito, levara-me, já que, na ocasião, preferia a morte a me deixar sozinho com mamãe. Nem um segundo fiquei perto dele, pois, igualmente sábio, também me parecia melhor ser estrangulado. Fui caminhando por terrenos baldios lá por perto todo o tempo, com nada de interessante pra olhar tirando aquelas "arvorinhas" de todo daquela cor da vida, cujo caule não é madeira, que cresciam retorcidas como se agonizando. Como disse, sempre amei o que há no chão: as estrelas do céu noturno, admiradas por muitos, são-me não mais que uma irritante distração. Não sei esse era por não confiar naquilo de cuja origem eu era ignorante, mas, se o era, isso explica porquê pus tanto cuidado em minhas observações vegetais. Na ocasião, decorei serem as folhas como as do mamão, e, mais tarde o soube, por isso mesmo são chamadas de mamonas. Levei também algumas frutas comigo, coisinhas que nascem de cachos voltados para cima, com uns projetos de espinho caídos e pouco mais verdes que a planta toda, esta sim um negócio surpreendente de parecer brava. Pensei em fugir, mas nada de bom viria disso, então voltei quando cansado de andar sem rumo. Sempre lembro dos caminhos que faço com os pés, por mais aleatórios, mas nunca de carro. Meu velho não saíra ainda, dando-me tempo pra morder meu novo brinquedo, ao que me arrependi rápido pelo gosto horrível. Devo ter ficado com uma careta nada discreta, com direito a ser notado por um dos compadres de mesa dali, que teceu o comentário: - Ei muleque, foi assim que mamou naquela vaca? - Herdou dela! A mesa inteira riu, menos meu pai, que, raivoso, levantou-se e, puxando pelo braço, me arrastou pro carro. Fiquei com a marca por alguns dias. Ainda reclamando seus blá blá blás enquanto falava ininteligivelmente, uma hora só parou; adorei os dois segundos, mas, seguidos por uma paralisia completa do sujeito (na realidade, mais uma indisposição a qualquer coisa além de pôr as mãos no peito), pondo em risco o carro e a mim, não foram dos melhores. Tomei o volante com o braço bom e parei o carro numa beira de estrada, onde pude olhar pro pobre desgraçado alguns momentos mais. Então comecei a pular no peito dele; nem foi tão difícil nem durou tanto tempo. A essa altura, tinha o quê? Três, quatro, cinco transeuntes vendo tudo? Enfim, hoje penso ter sido um belo espetáculo. Só depois veio a polícia, que levou-nos pra casa. O caminho pareceu mais longo do que nunca, mas o que podia fazer? Foi só quando chegamos, com minha mãe inda ausente, passando aquela noite com quem depois vim descobrir ser minha professora de matemática do prezinho, sua amante, que tive uma epifania. Estando já meu pai de cama, tirei do bolso os frutos restantes e os deixei nalgum canto onde seria eu capaz de acessá-los num tempo que julgava o bastante; com o gosto delas nada satisfazendo, fui comer o pão restante dalguns dias. Talvez porquê até ali minha vidinha vazia tivesse seguido um curso tão banal e certo, dessas automações que não nos tornam melhores que as máquinas, sequer passara em minha cabeça a possibilidade de não haver comida boa ao dia. Durante algum tempo, meu lar o que posso chamar "uma fábrica de dias iguais", produzindo nenhum especial o bastante para ser minimamente distintivo. Claramente, as coisas mudaram aos primeiros movimentos mais distintos de minha mãe, mas eram uns olhares e uns comentariozinhos que um rapaz daquela idade, especialmente se fosse tão focado quanto eu na imobilidade das espécies imóveis, jamais processaria; passava tudo como uns sopros, uns ares indistinguíveis e indiferenciáveis até então da normalidade. Ver meu pai caído no chão quase incapaz de respirar? Vira-o antes, possivelmente nunca em condição tão grave, mas foi coincidência; meu suposto heroísmo veio do fato que ele era minha carona: tinha dirigido por alguns poucos segundos e soube que não era o que eu queria pra minha vida. A primeira mudança a causar-me de fato maior impressão e, talvez por isso mesmo a única a imprimir-me tão vívida lembrança, foi ver o pão mofado. Que lindo bolor, pai de todo o meu talento! Até hoje, no entanto, desconheço a espécie em questão; só sei que devo tudo a ela, e um cheque gordo é o mínimo que eu deveria dar a estes genitores de esporos, caso se importassem com essas coisas. Que sublime pensei tudo aquilo! Sabia desde então que havia ali uma forma de vida, não muito diferente dos musgos, estes tomados por mim como mini-florestas, pensadas em si pra sua própria subsistência. Imaginei logo o pensamento coletivo envolvido em colonizar um mundo fermentado e estranho. Nunca antes vi gente morrendo, mas vi alguns cadáveres em enterros por lá, já que eram sempre abertos e às vezes eu passara pura e simplesmente por passar. Mas era diferente do que podem pensar vocês dos enterros mais padrão num grande país como o nosso: necromaquiagem e qualquer coisa parecida era totalmente desconhecida pra gente. Por isso, fazia-se toda cerimônia possível, quando o eram, rápido; mas tiveram exceções, sendo estes os casos em que creio haver deitado meus olhos por mais tempo sobre os já deitados defuntos. Por quê digo tudo isso? Meramente porquê ver comida num estado que julgava análogo ao do comecinho de putrefação criara algo em mim. Comi mesmo assim e fui dormir. Gosto de dormir, mas parei pra pensar nesses últimos tempos trabalhando com finar gente e aprendi algumas coisas. Primeiramente, coisas não matam coisas, processos matam processos ou, melhor, processos com processos fazem novos acontecerem; morrer não é uma coisa, é uma ação da qual somos, ironicamente, pacientes. A morte pode ser vista como uma entrada pra vida eterna, caso so queira, mas, àqueles com a cabeça no lugar, que sabem não haver alma, podem pensar na morte como um simples sono longo; mas não haveria prazer nisso. Sei soar óbvio, e de fato o é, mas nunca o que é claro em nossa mente torna-se evidente ao corpo sem explicações reais. Todo o prazer do sono de pessoas como eu não vem do sono profundo em que nada se sente, e sim do estado em que se dorme e so sabe. Sentir os lassos membros descansarem e se embalar no próprio corpo, sentindo-o sua casa segura, isto é, a sensação de todos que já dormiram numa cama com um lençol tiveram (e mal tê-los agora me faz percebê-lo mais nitidamente) /é/ o real prazer do sono. O que vocês e todo mundo gostam é estarem bêbados no inter-dormiens. Quem não gostava, quando podia e o tinha, de sentir o travesseiro contra suas bochechas ou nuca? É isto que se ama, e não o sono, que não pode ser sentido. Este prazer e todos os outros, estes não tereis na morte. Na manhã seguinte, meu pai tão bêbado de sono quanto vos disse (mas conheço bem o sono do álcool ao dia seguinte, e sei ser em nada agradável), despertei tirando com as unhas a "poupa" das frutas, embora tal palavra tão estranha soe ao falar da mamona, que quase nada tem além daquilo que julguei serem três nozes duras juntas, que sequer consegui desunir. Deixei de lado a empresa de tirar as irmãs umas das outras por dois segundos, mas mal pude me conter. Peguei-as novamente e decidi que andar me faria bem. Lá pelo quarteirão, s casas acumuladas me impediam de ver qualquer coisa útil em terrenos tão baldios quanto o da última vez, não os existindo. Aqui cabe dizer o quão magricelo sou e era, sendo fácil dizer a razão pela qual fui derrubado, e não o contrário, ao esbarrar nalguém. Como num flash, vi primeiro o Sol e depois um cabelo cobrindo-o, sendo o entorno da mais simbólica cabeça que o fazia; foi esta talvez outra epifania (na época, tinha muitas delas) a acender-me posteriormente a ideia de haver mesmo dentro daquelas castanhas esverdeadas inda algo mais. Mas foi só mais tarde, isso. Na hora, o que vi em seguida foi o rosto do dono da silhueta. Podeis pensar logo tratar-se dum rosto ao molde grego, dos quais estão cheios os livros efeminados, cujas maçãs saltam et cetera. O caso era outro. O rosto sim, talvez tivesse algo de modelado, mas este era aquilino, isto é, em tudo quanto possível, pontudo; a cara parecia enjoada; por ela, com mais ossos que pele e sem bochechas, via-se que não era tão menos magrelo que eu; só o bastante pra continuar de pé. - Porra, cuidado! O furor inicial deu espaço em dois segundos a uma preocupação obrigada. - Vem, levanta - conseguia ver o tendão do esforço que ele fez ao me ajudar. - Cuidado, mano. Cuidado. E ele assim desapareceu. Nalgum momento, encontrei as sementes sobre as quais pousava a atenção. Precisei voltar, julgando não estar em condições de qualquer coisa. Pobre de mim!, e Deus queira, será a última vez que ouvireis isso de minha boca; se eu soubesse o que estava por vir, não teria voltado. "Há males que vêm para o bem", este mantra carreguei comigo e inda levo como oração. Nunca soube, e ninguém saberá, quando o mal pesa mais que o bem da balança a ponto do alívio de um não valer o estresse do outro. Essas decisões, agradeço não ter mais que fazer. Minha situação doméstica tornou-se aquilo que nos acostumamos a ignorar quando acontece à medida que vamos nos tornando mais gente que pirralhos, mas nalguns casos, como vereis no meu, é bastante possível ganhá-la cedo, desde que à força da vida real. Tudo feito a força funciona muito bem. Minha mãe chegou à tarde, e creio ter sido o cheiro dela (porquê, meus amigos, qual outra explicação?) a acordá-lo. Ah, a briga! os gritos! o choro! Que insuportável! Aqueles sopros antes citados, só agora percebia, foram sinais de fumaça. Esta é das coisas mais irritantes pra uma criança, acreditem, e ao menos meus pais tiveram a decência de me manter fora disso, não por princípios, mas por esquecerem de minha existência. Nada me impedia, entretanto, de escutar muito bem tudo quando fingir surdez não funcionava; é horrível ouvir dois lados errados numa história sabendo que não havia possibilidade de dar certo mas com a única certeza de que, se houvesse como tornar as coisas menos desgraçadas, teria sido não tendo um filho no meio disso tudo. Honestamente, não sei como meus pais um dia chegaram tão perto um do outro a ponto de transarem pra me conceber; durante muito tempo pensei ter sido aquele seu único contato. Não creio ter eu mesmo nada a ver com um ou outro, mas acho que sou um dos casos em que todos os genes pulam uma geração (e não acreditaria nisso se eu não fosse a prova viva). Só o que vi depois dalgumas horas foi minha mãe indo ao próprio quarto, pegando algumas coisas e indo embora pra sempre. Nunca cheguei a sentir falta dela. Agora, só com meu velho pra me proteger nessa estrada da vida, não tive proteção alguma. O melhor que um pai pode fazer é justamente deixar o filho em paz; muitos de vocês nunca viram os seus, sei bem, mas quantos dos que tiveram a proeza nada de bom tiraram dela? Você mesmo, Coxão (o quê? Todo mundo sabe), quando viu o seu pela primeira vez, achando que ia achar um herói, não acordou com ele te sarrando na cama? Por isso, só tenho a agradecer ao meu, e quem reclama não tendo pasado o que o Coxão aqui passou fala de boca cheia. Sem sua permisividade e inépcia, quem eu seria hoje? Um desses jovenzinhos suicidas, dizendo a Deus e ao mundo as dores que passei; não comigo. Em vez de cortar os pulsos feito mulherzinha, acabei aperfeiçoando a técnica pela qual fiquei mais conhecido; difícil dizer se eu fiquei mais conhecido como o mais dado a usá-la ou se foi ela que afamou-se mais como minha preferida maneira de trabalho. Mas deixemo-na pra quando for oportuno. Não se mostra a arma do crime antes do motivo, como fazem os mistérios de cabeceira que as donas de casa amam ler; mistérios são pra amadores que ou não conseguem planejar por conta própria ou são tão burros que, como as crianças, se encantam quando escondemo-nos atrás das mãos e dizemos "Cadê? Achou!" Não, não; o motivo deve vir antes, e caso o valor da coisa toda se perca quando é o caso, então nenhum valor havia de verdade. E aqui cabe que ignorei até este momento pela pouca relevância em qualquer tópico até agora: a escola. Digo, sério? Como percebeis Passado bem pouco tempo, coisa dalguns dias, com aquele miolo de mamona já maduro, isto é, menos verde, mais cor de madeira, consegui abrir cada uma daquelas três "nozes" sem dificuldade; descobri que eram apenas cápsulas envoltórias das sementes.